Cultivando a aceitação e o estado de paz

Por: Swami Dayananda Saraswati

A palavra sânscrita kshánti freqüentemente é traduzida como "tolerância" ou "capacidade de suportar". Mas essas duas expressões portuguesas trazem um sabor negativo de "sofrimento resignado", quando, ao contrário, kshánti é uma atitude positiva - não uma resignação dolorosa. Uma tradução melhor seria "acomodação". A atitude de kshánti significa que eu, alegremente, calmamente, aceito aquele comportamento e aquelas situações que não posso mudar. Desisto da expectativa ou exigência pela mudança de outra pessoa ou situação, de forma a se moldar ao que penso ser agradável para mim. Eu me acomodo às situações e às outras pessoas alegremente.

Todos os relacionamentos requerem acomodação
Esse valor deve ser construído a partir da compreensão da natureza das pessoas e dos relacionamentos entre elas. Nunca encontrei numa pessoa todas as qualidades de que gosto ou todas de que não gosto. Qualquer pessoa será uma mistura de coisas que acho interessante e outras que considero desinteressantes. Similarmente, eu terei o mesmo impacto nos outros. Ninguém vai me achar totalmente agradável. Quando reconheço esses fatos, vejo que todos os relacionamentos requerem alguma acomodação da minha parte. Não estarei disposto, ou talvez não serei capaz de mudar ou satisfazer todas as expectativas que o outro tem de mim; tampouco os outros estarão dispostos ou serão capazes de mudar e satisfazer todos os meus critérios em relação a eles. Nunca encontrarei um relacionamento que não requeira acomodação.

Em especial, os relacionamentos que envolvem coisas que fortemente desgosto em alguém requerem acomodação da minha parte. Se eu for capaz de modificar a pessoa, ou se puder colocar uma distância entre mim e ela, sem faltar ao meu dever, tudo estará bem. Mas se não puder fazer isso, simplesmente devo me acomodar alegremente. Ou seja, devo tomar a pessoa como ela é. Não posso esperar que o mundo ou as pessoas mudem. Simplesmente não é possível compelir as pessoas a mudar para satisfazer minha expectativa de como elas deveriam ser. Algumas vezes alguém pode mudar um pouco por mim ou pode tentar mudar, mas não posso contar com isso. Geralmente, quando quero uma mudança nos outros, eles também desejam uma mudança em mim. Teremos, então, um impasse.

Para kshánti, diminua as expectativas
Quando examinar meus processos mentais, provavelmente verificarei que, para minha surpresa, eu ofereço kshánti mais prontamente para um tolo insuportável do que para meu melhor amigo. Isso porque não espero algo sábio ou inteligente de um tolo; mas espero que meu amigo viva de acordo com certos padrões que considero adequados. Um tolo incorrigível não consegue me desapontar, mas outros, por uma razão ou outra, em algum momento, conseguem. Não deveria ser assim. Minhas expectativas deveriam colocar todos na mesma categoria do tolo incorrigível. Ninguém deveria ser capaz de me desapontar, mas somente capaz de me surpreender. E minha atitude deve ser a de estar preparado para acomodar todas as surpresas possíveis.
Devo acomodar as pessoas como acomodo objetos inertes, isto é, devo tomá-las como são. Eu não gosto de ser queimado pelo Sol, porém não peço ao Sol que pare de brilhar. Aprecio a benção mista de um Sol quente brilhando e entendo que, sendo uma benção mista ou não, não posso desligá-lo. Não peço às abelhas que não tenham ferrão, tampouco odeio as abelhas se, estando no caminho delas, recebo uma picada. Continuo apreciando a função da abelha e aproveito o mel. Porém, considero ser muito mais difícil ter para com as pessoas a atitude que tenho com os insetos e objetos inertes. Posso me relacionar adequadamente com um objeto inerte ou uma criatura selvagem porque não espero qualquer mudança deles. Mas espero que as pessoas possam mudar para se tornarem mais agradáveis para mim. Mantenho minha mente agitada com exigências contínuas por mudanças de forma que os outros em minha vida sejam mais de acordo com as minhas preferências. De fato, nem os humanos podem ser capazes de mudança. Freqüentemente não conseguem mudar ou por falta de força de vontade ou por falta de vontade. Quando alguém não consegue mudar ainda que deseje mudar é porque não possui força de vontade. Nada mais há a fazer, a não ser acomodar essa pessoa. Quando uma pessoa não muda porque não deseja tentar a mudança, podemos tentar convencê-la a ter a vontade de se beneficiar de uma mudança. Se não for possível convencê-la, então acomode-a. O que mais se pode fazer?! De qualquer maneira, o mundo é amplo. A variedade torna-o mais interessante. Há espaço suficiente para acomodar a todos.

Responda à pessoa, não à ação
Para descobrir dentro de mim um valor pela acomodação, eu deveria olhar para a pessoa por trás da ação. Geralmente, é quando estou respondendo ao comportamento da pessoa, à sua ação, que acho difícil ser acomodativo. Quando tento entender a causa por detrás da ação, me coloco numa posição de responder à pessoa e não à ação, e então minha resposta para essa pessoa pode ser uma resposta acomodativa. Tento ver o que existe por detrás do súbito ataque de raiva ou da explosão de ciúmes ou da conduta dominadora e respondo à pessoa, e não às ações. Se não consigo ver o que há por detrás das ações, ainda assim, tenho em mente o fato de que muitas razões desconhecidas por mim armam o palco para qualquer ação por parte da outra pessoa. Com essa disposição de espírito achei natural ser acomodativo. Numa situação onde minha interação é para com a pessoa em vez de para com a conduta, conseguirei me manter calmo. De fato, a dissolução de qualquer discussão entre pessoas é quase sempre o resultado de uma apreciação mútua feita pelas pessoas em vez de uma nova atitude quanto à conduta irrefletida.
Reações mecânicas impedem a acomodação. Para ser livre ao interagir com uma pessoa, devo ser livre de reações mecânicas. Tenho que escolher minhas atitudes e fazer as ações deliberadamente. Uma reação é um tipo de conduta mecânica e não-deliberada. É uma resposta condicionada extraída de experiências anteriores, sem autorização prévia da minha vontade. Na verdade, é uma resposta que não foi avaliada conforme a estrutura de valores que estou tentando assimilar, mas que somente ocorreu. Algumas vezes a minha reação pode ser uma ação ou atitude que, mais tarde, após reflexão, eu aprovaria. Outras vezes minhas reações podem ser completamente contrárias às atitudes e ações que eu gostaria de manter ou fazer. Reações podem ir contra toda a minha sabedoria, estudo e experiência anterior. Esses fatores são relegados e a reação ocorre. O que aprendi anteriormente torna-se sem valor para mim. Posso ter lido todas as escrituras do mundo, posso ser um ótimo estudante de sistemas éticos, posso ser um profissional diplomado em dar conselhos aos outros, mas quando acontece a reação, essa será exatamente tão mecânica como a de qualquer outro. Sabedoria, aprendizado e experiência não me servirão de nada. Portanto, até que meus valores éticos se tornem completamente assimilados, estabelecendo uma base a partir da qual atitudes e ações corretas surjam espontaneamente, devo, através da atenção, evitar reações e, ao invés disso, deliberadamente e refletidamente escolher minhas ações e atitudes. Quando evito reações, estou livre para escolher minhas ações e atitudes, posso ser acomodativo em meus pensamentos, palavras e ações.

kshánti e ahimsá: qualidades de um santo
Acomodação é uma qualidade bela e santificada. Dentre todas as qualidades, ahimsá e kshánti constituem as qualidades de um santo. As qualificações mínimas para um santo são essas duas qualidades. Não é preciso ter sabedoria nem é necessário o aprendizado das escrituras para ser um santo, mas a pessoa deve ter esses dois valores. Um santo é uma pessoa que nunca fere conscientemente outra pessoa pela palavra, ação ou pensamento, e que aceita as pessoas - boas ou ruins - exatamente como elas são; que tem uma infinita capacidade de acomodar, perdoar e ser compassivo. Essas qualidades (acomodação, perdão, compaixão...) estão incluídas na qualidade chamada kshánti. Um santo sempre é dotado de kshánti - uma capacidade infinita para a compaixão. Ele responde à pessoa, não à ação. Ele vê a ação errada como um erro originário de um conflito interno e é compassivo para com a pessoa que o comete. Uma atitude de kshánti, acomodação, expande o coração. Esse se torna tão amplo que aceita todas as pessoas e circunstâncias exatamente como elas são, sem desejos ou cobranças de que sejam diferentes. Isso é kshánti

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